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A lírica da rosa e o retrato do povo: Drummond e a produção poética dos anos de guerra

Escrevi recentemente um artigo que trata da análise dos significados que o paralelo dos termos rosa e povo podem ter, através da leitura crítica de dois poemas do livro “A rosa do povo”, de Carlos Drummond de Andrade. Drummond sempre foi um de meus poetas preferidos e agora tive a oportunidade de, sob a orientação do professor Marcus Lash, analisar sua obra de uma perspectiva um tanto mais profunda. Deixo aqui o produto final desses estudos, o artigo “A lírica da rosa e o retrato do povo: Drummond e a produção poética dos anos de guerra“.


A lírica da rosa e o retrato do povo: Drummond e a produção poética dos anos de guerra.1

Felipe Cabral 2

A grandeza de uma obra de arte está fundamentalmente no seu caráter ambíguo,

que deixa ao espectador decidir sobre o seu significado.

Theodor W.Adorno

Palavras-chave:

A rosa do povo, Drummond, Adorno, crítica literária;

Resumo:

O presente artigo trata da análise dos significados que o paralelo dos termos rosa e povo podem ter, através da leitura crítica de dois poemas do livro “A rosa do povo”, de Carlos Drummond de Andrade.

Tal estudo é aqui apresentado sob a consideração dos elementos sócio-políticos, dos anos em que foram escritos – período relativo à segunda grande guerra -, contidos em três poemas, bem como em toda obra; fundamentados a partir da concepção adorniana de poética, lírica e sociedade.

Objetivos:

  • Estabelecer relações de entendimento dos poemas “A flor e a náusea” e “Anúncio da rosa”, presentes no livro “A rosa do povo” de Carlos Drummond de Andrade, com fatores do contexto sócio-político vivenciado na época do escrita dos mesmos;

  • Contrapor os poemas, bem como outros da obra em questão, à análise crítica sobre lírica e sociedade proposta por Theodor W.Adorno.

Introdução

Escrever sobre a poesia de Drummond, após mais de meio século de crítica literária em seu favor ou contra suas formas, ora inovadoras ora transgressoras, não se conjuga como tarefa reles nem de rápida feitura. Entretanto, faz-se aqui um esforço para dar luzes a pontos de uma de suas obras mais densas: A rosa do povo. Sabendo de antemão a grandeza e a dificuldade de conduzir tal intento, passemos a uma breve contextualização para, posto isso, levar às análises desejadas.

Drummond possui um conjunto de obras relativamente vasto3. São 29 livros de poesia, 09 antologias poéticas, 03 livros infantis e 19 livros de prosa. Dentro deste conjunto, o livro “A rosa do povo” é o 5° livro de poesia, escrito e publicado, ainda em vida, pelo próprio autor. Nesta obra encontram-se 55 poemas escritos no decorrer de dois anos – 1943-1945.

Há 23 anos passados da famosa e consagradora semana de 224a publicação desta obra se deu em 1945 – Drummond já não era mais o poeta iniciante, o “doido que escrevia sobre pedras”5. O mundo também já não era mais o mesmo e os prognósticos pareciam, a todo e qualquer homem ciente das barbáries da guerra que eclodira no mundo, bastante desoladores.

Governos democráticos entravam em choque, Estados totalitários firmavam-se por toda parte, diretos humanos eram sumariamente revogados e a arte, a bem dizer por muito mais de reles 23 anos, encontrava-se cada vez mais mercantilizada pela consolidação do moderno capitalismo insurgente desde meados do século XVIII com a Revolução Industrial.

É neste cenário que encontra-se Drummond no ano de 1943 quando inicia a produção de uma série de poemas que culminariam no conjunto a qual viria a publicar sob o título de “A rosa do povo”. Dito isso, passemos diretamente as marcas e significados trazidos pelos poemas.

A flor e a náusea: o inesperado como esperança e de um novo paradigma social.

Neste poema – a flor e a náusea -, logo no verso inicial, temos uma voz que possui juízo de consciência de classe6, sob a qual está presa e sob a qual questiona-se, ao final da 1° estrofe, sobre a possibilidade de mudanças sem o intermédio da força. Posso, sem armas, revoltar-me? Pergunta pressupondo que revoltas e armas são instâncias de ligação quase automáticas entre si. Não é estranho perguntar-se pois revoltar-se com armas, ao que parece, é o caminho mais comum.

Na sequência – estrofes 2, 3, 4, 5 e 6 – temos os desgostos do mundo vivido e as preocupações com a vulgaridade em que se converteu o estado das coisas. Várias são as afirmações de descrédito na cena vivida do cotidiano e nas mais importantes instâncias da vida. O tempo é de espera, o poeta é pobre, as coisas são tristes, o tédio consome, os homens são menos livres e tudo conduz a um ódio que no fundo é a melhor parte desse eu-lírico.

As três últimas estrofes, porém, mudam completamente o rumo da toada. Uma flor nasceu na rua!, exclama o primeiro verso da 7° estrofe.

Como algo sui generis, uma flor, a qual não se identifica a exatidão de que seja, rompe o asfalto e nasce no meio da rua, produzindo a ressignificação do estado das coisas postas. Uma flor, ainda que desbotada, sem precedentes no conhecimento humano até o presente – seu nome não está nos livros – é o que conduzirá a quebra do tédio, do nojo e do ódio, sentimentos presentes desde o inicio dos versos do poema.

A flor aí, portanto, seria algo inesperadamente desconhecido, mas que ao surgir, modifica toda a realidade vigente. Não é declarado o seu valor metafórico, podendo ser uma nova politica, um novo sentimento, um novo despertar para os valores humanos ou até mesmo uma nova arte – poética ou não – que ao surgir tal qual uma flor no meio do asfalto sem vida mexe com os sentimentos daquele que lentamente contempla suas formas.

Tal leitura do poema a flor e a náusea nos permite citar uma importante e categórica passagem da palestra sobre lírica e sociedade na qual somos convidados a pensar sobre as emoções e experiências individuais em contraste com emoções e experiências universais, presentes e refletidas na poesia e na arte de modo geral.

O teor [gehalt] de um poema não é a mera expressão de emoções e experiências individuais. Pelo contrário, estas só se tornam artísticas quando, justamente em virtude da especificação que adquirem ao ganhar forma estética, conquistam sua participação no universal. Não que aquilo que o poema lírico exprime tenha de ser imediatamente aquilo que todos vivenciam. Sua universalidade não é uma volonté de tous, não é a mera comunicação daquilo que os outros simplesmente não são capazes de comunicar. Ao contrário, o mergulho no individuado eleva o poema lírico ao universal por tornar manifesto algo de não distorcido, de não captado, de ainda não subsumido, anunciando desse modo, por antecipação, algo de um estado em que nenhum universal ruim, ou seja, no fundo algo particular, acorrente a outro, o universal humano. A composição lírica tem esperança de extrair, da mais irrestrita individuação, o universal.” (ADORNO; P. 66)

Da cena de uma flor que irrompe do asfalto, da força da imagem de algo delicado e sensível que perfura o inerte e duro solo da estrada, temos a sensação do inesperado que traz esperança. Vale ressaltar a simbologia presente nestes dois elementos, nessas duas palavras – flor-asfalto. Ao passo que a primeira é símbolo de beleza e sensibilidade – mesmo que no poema seja adjetivada como desbotada e feia – a segunda, asfalto, é simbolo de progresso industrial, de modificação do meio natural pelo homem.

Da particular cena do natural que luta contra o irrefreado estado de progresso, da individual experiência de ver nascer uma flor em meio ao asfalto da entediante e pobre cidade, temos o universal do sentimento, o universal das esperanças renovadas pelo novo que chega e que pura e simplesmente por chegar já modifica a mesmice até então instaurada. Entretanto o caráter desta universalidade, certamente social, se dá a medida que nos deixamos levar pela leitura sensível e pela reflexão exigente dos valores da palavra poética.

Essa universalidade do teor lírico, contudo, é essencialmente social. Só entende aquilo que o poema diz quem escuta, em sua solidão, a voz da humanidade; mais ainda, a própria solidão da palavra lírica é pré-traçada pela sociedade individualista e, em última análise, atomística, assim como, inversamente, sua capacidade de criar vínculos universais [allgemeine Verbindlinchkeit] vive da densidade de sua individuação. Por isso mesmo, o pensar sobre a obre de arte está autorizado e comprometido e perguntar concretamente pelo teor social, a não satisfazer com o vago sentimento de algo universal e abrangente. Esse tipo de determinação pelo pensamento não é uma reflexão externa e alheia a arte, mas antes uma exigência de qualquer configuração linguística.” (ADORNO; P. 67)

Anúncio da rosa: a mercantilização da arte poética.

Neste segundo poema – Anúncio da rosa – temos novamente o símbolo da flor e/ou rosa como centro das significações metafóricas. Já no título do poema surge o termo rosa, que além de dialogar diretamente com o título do livro, é trazido com as cargas imagéticas conquistadas no poema a flor e a náusea. Parece haver, portanto, não apenas uma intertextualidade entre este poema e o título do livro, mas entre este poema e demais poemas que compõem a obra.

A flor/rosa é algo que custa trabalho e por assim ser não pode ser vendida a pouco valor. Traz consigo auroras, sugere instâncias, conduz a exotismos e a catarses. Seria então o que a tal rosa? Se no poema A flor e a náusea temos a flor como o inesperado que surge para deslocar toda a morosidade vivida, aqui, em Anúncio da rosa temos a flor/rosa como a preceptora de auroras, exotismos e catarses, abstrações que poderiam também se encaixar dentro do plano do inesperado que conduz a novas sensações.

Na quarta estrofe temos o verso: Autor da rosa, não me revelo, sou eu, quem sou? – no qual o eu-lírico, afirmado com autor da rosa, indaga-se sobre alguma identidade. Ora, se a rosa tem autor, seria, então, ela um poema ou uma obra poética inteira? É o que nos faz perguntar, deixando suspenso no ar o fechamento dessa ideia ao leitor. E assim sendo, a poesia ou a arte poética, não pode ser posta como mercadoria barata pois a muito lhe custou elaborá-la.

Selarei, venda murcha, meu comércio incompreendido,

pois jamais virão pedir-me, eu sei, o que de melhor se compôs na noite,

e não há oito contos. Já não vejo amadores de rosa.

Ó fim do parnasiano, começo da era difícil, a burguesia apodrece.

Aproveitem. A última

rosa desfolha-se.

(DRUMMOND; P.78 – última estrofe)

Essa ideia da mercantilização barata do fazer poético é também fruto do momentos vivido, que prossegue, historicamente, com maior ênfase até os dias atuais, isto é, do período em que Drummond escreveu tais poemas – 1943-1945 – até os dias contemporâneos nos quais a poesia não possui mais um Mecenas7 ou um Estado8 que lhe alicerce as condições objetivas de produção9.

O compromisso de produzir arte para além destas condições ficaria vetado ao artista. Em Adorno, ao que parece, há a defesa da ideia de um escritor – ainda que indissociavelmente preso a posição social a qual submete a si e a sua própria obra – compromissado com um fazer poético imanente e transcendental as questões particularizadas da politica social de sua época. Vejamos este trecho:

Esse pensamento, porém, a interpretação social da lírica, como aliás de todas as obras de arte, não pode portanto ter em mira, sem mediação, a assim chamada posição social ou a inserção social dos interesses das obras ou até de seus autores. Tem de estabelecer, em vez disso, como o todo de uma sociedade, tomada como unidade em si mesma contraditória, aparece na obra de arte; mostrar em que a obra de arte lhe obedece e em que a ultrapassa. O procedimento tem de ser, conforme a linguagem da filosofia, imanente. Conceitos sociais não devem ser trazidos de fora às composições líricas, mas sim devem surgir da rigorosa intuição delas mesmas.” (ADORNO; P.67)

Tal afirmativa é a valoração que de a arte, em essência, não poderia estar a serviço de uma ideologia, seja ela partidária ou não, conceito que pode ser admitido para a poesia de Drummond se considerarmos não seu caráter engajado, visto que incorreríamos no erro de exatamente apontar quais seriam os exatos traços de engajamento presentes nela e em que medida eles influenciariam sua leitura – tarefa muito pouco promissora se pensarmos em termos anacrônicos, mas sim sua busca por um caminho ao mesmo tempo novo e revelador.

…ideologia é inverdade, falsa consciência, mentira. Ela se manifesta no malogro das obras de arte, no que estas tem de falso em si mesmas, que deve ser apontado pela crítica. Mas dizer de grandes obras de arte , que tem sua essência no poder de configuração e apenas por isso são capazes de uma reconciliação tendencial das contradições fundamentais da existência real, que elas são ideologia, não é simplesmente fazer injustiça ao próprio teor de verdade dessas obras, é também falsear o conceito de ideologia.” (idem. P.68)

Considerações Finais

Postas as configurações até o presente expostas, ainda poderíamos afirmar que em ambos os poemas, há uma certa fusão do tempo existencial com o tempo social. Mesmo preso as condições oferecidas pela sociedade de seu tempo, o eu-lírico faz arte a medida que seu tempo existencial assim o permite.

Podemos considerar, portanto, que, em face do particular, a poesia de Drummond tomada aqui, conduz ao universal através do sentimento de incompletude e incompreensividade do estado das coisas presentes no mundo moderno, advindos de guerras, males e injustiças sociais, a qual estão sujeitos todos aqueles que puserem-se a refletir sobre o mundo e o espaço social em que vivem.

É possível propor um quadro de síntese dos elementos presentes nos poemas, a fim de que a melhor sistematização destes permita ver como as características do texto conduzem as intertextualidades contidas entre os poemas citados e a obra como um todo.

Síntese das características presentes nos poemas

Características

A flor e a náusea

O anúncio da rosa

Pessoa que fala

1° pessoa do sing.

Ex: [eu] vou de branco pela rua cinzenta.

1° pessoa do sing.

Ex: Autor da rosa, não me revelo, sou eu, quem sou?

Estrutura do versos

Verso livre

Verso livre, porém com algumas rimas internas e versos fixos

Tema do poema

A flor que nasce inesperadamente no asfalto

A “rosa”, como poesia, que é vendida

Significados do símbolo flor e/ou rosa

O inesperado

A poesia

Por fim cabe-nos a questão adorniana: a relação poética entre o eu-lírico e a sociedade seria tanto mais perfeita quanto mais velada fosse este tema na composição. A leitura da poesia de Drummond, em especial as aqui proferidas, permitiria-nos apontar menor ou maior valor, visto que, ainda que carregam marcas declaradamente de cunho político-social, são primordialmente expressões da alma humana em um fazer literário? É possível crer que sim, afinal a leitura que se faz delas é, em justa medida, a leitura a que couber ao leitor atento, aguçado e crítico para a complexidade de relações semânticas e estéticas entrelaçadas, escondidas e traduzidas nos versos drummondianos. Não se trata pois de simples – por assim dizer – aparelhamento da poesia em nome da causa política, mas sim a intensa expressão do homem político Drummond no fazer artístico poético que é pura expressão de sua própria arte com as palavras. Do particular ao universal, Drummond nos apresenta nessas obras diversas imagens esculturais, enredadas de beleza em verso, marcando assim sua obra na história dos grandes poetas modernos da literatura brasileira e internacional.

Referências:

ADORNO, Theodor Ludwig Wiesengrund. Notas de Literatura I. São Paulo: editora 34, 2003.

ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. 41° edição. Rio de Janeiro: Record, 2008.

Anexo 1 – Obras publicadas

Esta lista de obras encontra-se disponível no anexo do livro “A rosa do povo”, da editora Record (41° edição), bem como em outros demais livros publicados em recentes novas tiragens das obras de Drummond.

  1. Alguma Poesia (1930)

  2. Brejo das Almas (1934)

  3. Sentimento do Mundo (1940)

  4. José (1942)

  5. A Rosa do Povo (1945)

  6. Claro Enigma (1951)

  7. Fazendeiro do ar (1954)

  8. Quadrilha (1954)

  9. Viola de Bolso (1955)

  10. Lição de Coisas (1964)

  11. Boitempo (1968)

  12. A falta que ama (1968)

  13. Nudez (1968)

  14. As Impurezas do Branco (1973)

  15. Menino Antigo (Boitempo II) (1973)

  16. A Visita (1977)

  17. Discurso de Primavera (1977)

  18. Algumas Sombras (1977)

  19. O marginal clorindo gato (1978)

  20. Esquecer para Lembrar (Boitempo III) (1979)

  21. A Paixão Medida (1980)

  22. Caso do Vestido (1983)

  23. Corpo (1984)

  24. Amar se aprende amando (1985)

  25. Poesia Errante (1988)

  26. O Amor Natural (1992)

  27. Farewell (1996)

  28. Os ombros suportam o mundo(1935)

  29. Futebol a arte (1970)

Antologia poética

  1. A última pedra no meu caminho (1950)

  2. 50 poemas escolhidos pelo autor (1956)

  3. Antologia Poética (1962)

  4. Antologia Poética (1965)

  5. Seleta em Prosa e Verso (1971)

  6. Amor, Amores (1975)

  7. Carmina drummondiana (1982)

  8. Boitempo I e Boitempo II (1987)

  9. Minha morte (1987)

Livros Infantis

  1. O Elefante (1983)

  2. História de dois amores (1985)

  3. O pintinho (1988)

Prosa

  1. Confissões de Minas (1944)

  2. Contos de Aprendiz (1951)

  3. Passeios na Ilha (1952)

  4. Fala, amendoeira (1957)

  5. A bolsa & a vida (1962)

  6. Cadeira de balanço (1966)

  7. Caminhos de João Brandão (1970)

  8. O poder ultrajovem e mais 79 textos em prosa e verso (1972)

  9. De notícias & não-notícias faz-se a crônica (1974)

  10. Os dias lindos (1977)

  11. 70 historinhas (1978)

  12. Contos plausíveis (1981)

  13. Boca de luar (1984)

  14. O observador no escritório (1985)

  15. Tempo vida poesia (1986)

  16. Moça deitada na grama (1987)

  17. O avesso das coisas (1988)

  18. Auto-retrato e outras crônicas (1989)

  19. As histórias das muralhas (1989)

Anexo 2- Poemas

A flor e a náusea

Preso à minha classe e a algumas roupas,

vou de branco pela rua cinzenta.

Melancolias, mercadorias espreitam-me.

Devo seguir até o enjôo?

Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:

Não, o tempo não chegou de completa justiça.

O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

O tempo pobre, o poeta pobre

fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.

Sob a pele das palavras há cifras e códigos.

O sol consola os doentes e não os renova.

As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.

Quarenta anos e nenhum problema

resolvido, sequer colocado.

Nenhuma carta escrita nem recebida.

Todos os homens voltam para casa.

Estão menos livres mas levam jornais

e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?

Tomei parte em muitos, outros escondi.

Alguns achei belos, foram publicados.

Crimes suaves, que ajudam a viver.

Ração diária de erro, distribuída em casa.

Os ferozes padeiros do mal.

Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.

Ao menino de 1918 chamavam anarquista.

Porém meu ódio é o melhor de mim.

Com ele me salvo

e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto.

Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.

Suas pétalas não se abrem.

Seu nome não está nos livros.

É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde

e lentamente passo a mão nessa forma insegura.

Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.

Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Anúncio da rosa

Imenso trabalho nos custa a flor.

Por menos de oito contos vendê-la? Nunca.

Primavera não há mais doce, rosa tão meiga

onde abrirá? Não, cavalheiros, sede permeáveis

Uma só pétala resume auroras e pontilhismos,

sugere estâncias, diz que te amam, beijai a rosa,

ela é sete flores, qual mais fragrante, todas exóticas,

todas históricas, todas catárticas, todas patéticas.

Vede o caule,

traço indeciso.

Autor da rosa, não me revelo, sou eu, quem sou?

Deus me ajudara, mas ele é neutro, e mesmo duvido

que em outro mundo alguém se curve, filtre a paisagem,

pense uma rosa na pura ausência, no amplo vazio

Vinde, vinde,

olhai o cálice.

Por preço tão vil mas peça, como direi, aurilavrada,

não, é cruel existir em tempo assim filaucioso.

Injusto padecer exílio, pequenas eólicas cotidianas,

oferecer-vos alta mercancia estelar e sofrer vossa irrisão.

Rosa na roda,

rosa na máquina,

apenas rósea.

Selarei, venda murcha, meu comércio incompreendido,

pois jamais virão pedir-me, eu sei, o que de melhor se compôs na noite,

e não há oito contos. Já não vejo amadores de rosa.

Ó fim do parnasiano, começo da era difícil, a burguesia apodrece.

Aproveitem. A última

rosa desfolha-se.

1 Artigo escrito em Novembro de 2009, para departamento de Letras da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp sob orientação do professor Marcus Lash da disciplina de Estudos Literários.

 

2 Graduando do curso de Letras da UNIFESP – Universidade Federal de São Paulo.

Email: felipehistory (arroba) gmail.com

3 Ver anexo 1 – lista de obras publicadas ao final deste artigo.

4 A Semana de Arte Moderna, também chamada simplesmente de Semana de 22, ocorreu em São Paulo no ano de 1922, de 11 a 18 de fevereiro, no Teatro Municipal. É considerada pela crítica como o marco do Modernismo no Brasil.

5 Em entrevista a um programa de televisão, realizada em 1980, Drummond queixa-se da conservadora crítica literária dos anos 20 que o classificava como “um doido que escrevia sobre pedras no meio do caminho”.

6 Entende-se na sociologia e em algumas áreas da filosofia moderna como “consciência de classe” o despertar de um grupo social ou de um indivíduo para seu verdadeiro poder no espaço social a qual está inserido. Segundo Marx, filosofo que cunhou o termo, o princípio da consciência de classe é o primeiro passo para a aquisição de autonomia e igualdade nas relações econômicas e sociais do trabalho.

7 Mecenas (Caius Maecenas) foi cidadão romano e de confiança do Imperador César Octaviano (Augustus). Durante toda sua vida, devotou esforços ao círculo literário famoso de sua época, que incluiu Horácio, Virgilio, e Propertius, patrocinando-os com amizade, bens materiais e proteção política. Por conta disso o termo mecenas e suas derivações – mecenato, mecenagem – tornou-se sinônimo de patrocínio a artistas e produtores artísticos de modo geral.

 

8 Durante toda a história da humanidade, o único período em que a arte não esteve ligada ao patrocínio do Estado ou a uma instância social reconhecidamente autorizada é a modernidade, na qual a arte se converteu em produto a ser negociado e vendido para as massas populares.

 

9 Ver também ADORNO, P. 69: “A idiossincrasia do espirito lírico contra a prepotência das coisas é uma forma de reação a coisificação do mundo, à dominação das mercadorias sobre os homens, que se propagou desde o inicio da Era Moderna e que, desde a Revolução Industrial, desdobrou-se em força dominante de vida.”


2 comentários em “A lírica da rosa e o retrato do povo: Drummond e a produção poética dos anos de guerra”

  1. Ótimo trabalho! Me ajudou muito na compreensão do poema o “Anúncio da rosa”, de Drummond.

    Luciane Barros
    Graduanda de Letras/Português.

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