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Cena 1: o elemento invisível e as novas impressões

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Sim, havia na desgraça uma parte de abstração e de irrealidade. Mas quando a abstração começa a matar-nos, é necessário que nos ocupemos da abstração. (p.81) Albert Camus. A peste.

Férias de Verdade

Ao primeiro dia de março do ano de 2020 embarcamos – eu, minha companheira e nossa filha – rumo ao Chile. A ideia era passar dez dias conhecendo um pouco mais desse pedaço da América Latina, extensa terra que se banha ao Pacífico de um lado e se guarda, imensa, com suas cordilheiras do outro. Fomos de férias, com agenda e compromissos pintados para alegria, sem grandes pressas ou sobressaltos. Dividimos o plano de viagem entre capital e litoral, tentando aproveitar os dias sem precisar correr para ver o país todo de uma única vez, afinal, sendo o Chile um país tão extenso, essa não deveria ser uma viagem definitiva.

Jamais poderíamos antever o que viria, embora alguns sinais tenham passado por nós. Foi melhor assim. Há certas coisas que não devem ser antecipadas para benefício do prazer em viver o agora. Foram dias mágicos. Houve cansaço, houve pequenos percalços, mas a aventura, o novo e o belo estiveram em nossos horizontes e fermentaram ideias há tempos esquecidas. Vimos o mar e a montanha, as planícies secas, mas também as vinhas verdes cobertas de cachos de uvas. Andamos como anônimos usando transporte coletivo e experimentando pratos locais nos lugares mais corriqueiros que encontrávamos. Passados os 10 dias, sem grandes questões, voltamos. Cheios de novas experiências e instigados a continuar vivendo aquelas novidades imaginamos fazer um jantar para diversos amigos e familiares com o tema “Chile: cheiros e sabores”. Já havíamos feito algo assim depois de voltar do Uruguai, Portugal e do Japão, mas dessa vez seria diferente…

De volta… ao lar?

Ao chegar em São Paulo, metrópole cosmopolita e muito verticalizada, o sentimento inicial era de voltar a rotina. Fomos recebidos no aeroporto por minha cunhada que veio nos buscar de braços abertos e com flores. No dia seguinte – uma quarta-feira ensolarada, dia 11 de março – logo cedo eu já estava no escritório na Avenida Paulista, um dos centros empresariais mais abundantes da cidade. Olhando pela janela do alto da torre onde trabalho, via novamente o horizonte de prédios e as ruas cheias de carros indo e vindo. No almoço, como sempre, restaurantes cheios e muita gente em todos os cruzamentos. Aquele dia, em especial, marquei de almoçar com meu irmão e minha mãe para revê-los e para entregar alguns presentes que havia trazido da viagem. Em especial, trouxe na mala o Aji, pimenta muito encontrada nas mesas de refeição dos chilenos, e outras especiarias e condimentos. A ideia era trazer um pouco dos sabores que nos conduziram durante a parte gastronômica da jornada.

Fomos a um restaurante coreano que havia sido aberto há poucos anos na rua logo atrás ao prédio onde trabalho. Depois de fazer o pedido, fomos ao salão principal, como sempre cheio, onde as pessoas estavam com dificuldades de achar lugares para sentar. Por fim, sentamos numa mesa compartilhada. Entreguei os presentes, contei um pouco da viagem, disse-lhes que tinham de ir ao Chile, que era um lugar fabuloso, cheio de paisagens incríveis e praias fantásticas. Insisti na narrativa sobre as zonas urbanas da capital Santiago, cidade toda plana e cheia de parques com uma arquitetura urbanística invejável. Também falamos sobre o momento político que o país vizinho estava atravessando, o colapso da qualidade de vida para a população da base da pirâmide, que se dava muito provavelmente por conta do esgotamento do modelo econômico que vinha sendo empregado há décadas. Por fim disse do jantar que iriamos organizar em casa e pedi que viessem, que aguardassem com expectativas e prometi não decepcionar.

Quando estávamos terminando, meu irmão comunicou que precisava dizer uma coisa. Começou assim: “Você está acompanhando essa doença da China? Isso já chegou aqui e vai ser feio.” Eu disse apenas que vi, que havia sinalizações sobre isso no aeroporto de Santiago e um pouco no aeroporto internacional de Guarulhos, que parece que havia um homem doente em São Paulo vindo da Itália e que outros casos estavam surgindo, ainda sem confirmações precisas. Ele me respondeu “Você não está entendendo, esse negócio tem um potencial para acabar com a gente, vai vir uma crise gigante”. Achei um tremendo exagero. Achei que ele estava ansioso e preocupado com a economia e com a empresa que eles haviam aberto há 3 anos. Tentei relativizar, tecer argumentos, mas foi meio em vão. Terminei o almoço com a sensação de que meu irmão estava paranoico e que ele deveria fazer alguma coisa para seu próprio bem-estar. Nos despedimos e ele me disse: “Se você tiver dinheiro em algum investimento, resgate hoje, agora!”. Respondi apenas que sim, mas por dentro com a certeza de que eu não ia fazer nada.

Começando o desespero!

A semana foi passando, mais dois dias e o sábado havia chegado. A quinta e a sexta-feira foram dias caóticos, muito estressantes. O noticiário já pintava o cenário cataclísmico e mostrava como a Europa estava imersa em uma situação difícil, sem precedentes nos tempos mais modernos, com especial ênfase a Itália, cujo número de doentes era exponencialmente crescente e os hospitais já dava sinais de incapacidade de atendimento na Lombardia. Seria mesmo uma pandemia global com poder de paralisar tanta gente em todos os lugares? Eu já estava bem preocupado. Saí de casa no sábado para comprar álcool, luvas e máscaras e vi farmácias lotadas. Segundo informações de quase todos os veículos de mídia, estes seriam insumos básicos para se proteger em meio ao que estaria por vir. Depois de entrar em 5 diferentes estabelecimentos, encontrei o álcool e as luvas, mas as máscaras tinham sumido. Por sorte encontrei algumas na internet e fiz uma compra online. Sem saber muito o que fazer e carregado de informações do medo propagado pelos meios de comunicação, fiz uma refeição leve no final da tarde e resolvi fazer algo que não fazia há dois anos: correr à noite no parque Ibirapuera, um dos principais parques da cidade.

O parque estava relativamente tranquilo, com tudo funcionando, mas com menos pessoas circulando do que de costume. Nas noites de verão dos meses de férias, era comum certa dificuldade dos passantes em caminhar devido a quantidade de gente que circulava, certamente dez vezes mais do que eu estava vendo ali naquela noite. Voltei para casa renovado, de alma lavada, depois de dar três voltas completas no parque, tendo corrido mais ou menos uns 15 quilômetros. Tomei um banho quente, fiz um chá e coloquei um filme na televisão. Depois de meia hora já estava com tanto sono que só consegui desligar a televisão e ir direto para cama.

Eu estivera sozinho desde a volta para o Chile. Minha companheira, levando minha filha, resolveu estender as férias com os pais dela pelo interior de Minas Gerais. Eles só iriam voltar no início da semana seguinte. Por telefone, no domingo de manhã, matei as saudades e avisei que a situação não era boa, contei um pouco do que estava acontecendo e da escalada da coisa como um todo. Minha mulher achou que eu estava afetado demais. “Olha, talvez seja bom você parar de ler notícias, vamos com calma, você só deve estar se sentindo sozinho e chateado por ter voltado ao trabalho em meio a rotina estressante” ela me disse. “Encontre algo para fazer, algo que desperte sua criatividade, vai te fazer bem. Aproveite o tempo sem nós.” O que eu poderia dizer? “A partir de segunda-feira nenhum escritório da Avenida Paulista, quiçá de toda cidade, vai estar funcionando. Minha empresa convocou uma reunião de emergência do conselho diretor no final de semana e decretou, a priori, duas semanas de home office para todo mundo. Em trinta anos de existência da empresa essa é a primeira vez que fazem isso, eles são contra trabalhar de casa. Dessa vez é muito sério.”, eu argumentei. Incrédula, ela só me disse que ia terminar de curtir a viagem e que deixaria essa preocupação para a volta.

Não há fronteiras seguras

Guerra invisível no que tange ao inimigo, ruidosa por todos os canais de comunicação, desacreditada pelos mais altos escalões da política do mundo, a mais temida e incontrolável porque desconhecia fronteiras num mundo cada vez mais conectado. A primeira do século XXI de proporção total. Não há uma só nação que não tenha soldados abatidos por ela e ainda assim todos lutam sem saber quando será decretada a paz.

Este era apenas o primeiro capítulo da história acontecendo. As semanas que se seguiram foram norteadas por uma grande falta de perspectiva e uma certeza crescente de que estávamos enveredando por uma guerra sem-fim. Entrincheirados em casa, passamos a primeira semana muito desconfortáveis e emotivos, sem saber como conciliar trabalho, rotina dos afazeres básicos de sobrevivência, cuidados com nossa filha e espaço de descanso.

Acostumados a sair todos os finais de semana e agora obrigatoriamente confinados a sessenta metros quadrados de um apartamento, nos vimos forçados a repensar o normal. Como abasteceríamos a dispensa e a geladeira? Como poderíamos trabalhar e ao mesmo tempo cuidar de nossa filha sozinhos? Como faríamos para ter comida pronta para o café, almoço e janta todos os dias? Seria possível praticar alguma atividade física nesse contexto para manter a saúde do corpo? Como manteríamos o contato com nossos familiares? Essas perguntas nos sufocavam e encontrar respostas saudáveis para elas foi um tanto desafiador nesse contexto onde as informações eram muito paralisantes. Mas aos poucos fomos criando novas rotinas e funcionamentos.

O primeiro passo foi criar uma lista de tudo aquilo que não usávamos há muito tempo e que não seria útil nem afetivamente nem funcionalmente nesse período de contenção. Essas coisas foram direto para caixas de doação e nos primeiros dias saíram de casa. Depois, tratamos de estabelecer um protocolo de saída e chegada em virtude das vezes que íamos ser obrigados a sair, como, por exemplo, na hora de jogar o lixo fora ou buscar alguma coisa importante do lado de fora. A ideia era não trazer contaminantes para nossa pequena morada, então saíamos de máscara e luvas descartáveis e quando voltávamos, deixávamos os sapatos do lado de fora. Fizemos também uma lista de alimentos essenciais e abastecemos a dispensa e a geladeira sem exageros para um período de 4 semanas, com compras online, privilegiando produtores e comércios locais próximos ao nosso endereço.

Assim passamos o primeiro mês, nos ajeitando e entendendo como ia ser dali para frente. Cogitamos sair da cidade, mas para onde? Fugir para as montanhas não parecia nem um pouco razoável, uma vez que a iminente decretação de uma quarentena total iria nos obrigar a ficar mais ilhados do que já estávamos. Se acontecesse algo que necessitasse de intervenção, um acidente doméstico ou mesmo se um de nós ficasse doente e precisasse de atendimento médico de emergência, um lugar pequeno e pouco estruturado tinha menos chances de nos ajudar do que onde estávamos. Para o bem e para o mal, moramos na cidade mais populosa da América Latina, com os maiores hospitais e a maior rede de farmácias, consultórios e estabelecimentos no geral. Além disso, mesmo separados por alguns quilômetros, estávamos dentro da mesma cidade que nossas famílias, o que significava uma possibilidade ao menos imaginada de poder contar com eles ou apoiá-los.

Ideias, novas efervescentes ideias

A falta de horizontes e a razoabilidade deteriorada da situação nos deu alguns empurrões. Sem saídas externas, nós nos voltamos para dentro, cada vez mais para dentro numa investigação intuitiva de desejos latentes. O que era possível fazer nas condições que estavam dadas? Com que futuro seria possível sonhar diante de um hoje tão broxante? Eu ia dormir pensando no que faria no dia seguinte e tudo era tão igual e tão enfadonho, tão sem perspectiva, que logo me vinha a vontade de distração e de não pensar em qualquer assunto. No meio desse mato sem qualquer cachorro, comecei a vislumbrar pratos diferentes para os almoços que faria. Detalhe importante que não mencionei até aqui: na divisão de tarefas da nova rotina fiquei responsável por lavar as roupas, cuidar de nossa filha no período da manhã, cuidar da dispensa de alimentos, do refrigerador, da cozinha de modo geral e por preparar os almoços todos os dias, de segunda a segunda. Essa última não foi uma tarefa difícil, com uma certa predisposição a gastronomia, ao longo da vida até aqui me dediquei a aprender alguns pratos que pudessem não fazer vergonha numa mesa.

Assim, atarefado com o almoço de todos os dias, me vi na singular missão de fazer algo novo sempre que pudesse. Retomei então o projeto de pães caseiros de fermentação natural, habilidade que havia desenvolvido há seis anos e que estava adormecida pela falta de tempo. Toda semana passei a fazer um pão novo com objetivo de encontrar o pão perfeito, aquele de casca dura e miolo macio feito a partir de apenas 3 ingredientes: farinha, água e sal. Depois do pão vieram os petiscos de espalhar, pastas de grãos e leguminosas para comer junto. E aí outras novidades apareceram com força: os fermentados. Comecei a aprender sobre processos de fermentação em livros que havia ganhado e nunca lido, além de procurar desesperadamente sobre o assunto na internet. As notícias sobre os doentes, mortos e desastres políticos rivalizavam com a pesquisas sobre como preparar e conservar alimentos sob fermentação. No começo foi só o chucrute e alguns legumes. Depois vieram as bebidas, o kombucha, a ginger ale, o refrigerante fermentado caseiro com kefir. E aí começaram a vir os processos mais controlados, os sabores do oriente como o missô, o koji kin, o natto, o kimchi e o tempeh.

Pouco a pouco a minha cozinha resignada ao arroz e feijão foi dando espaço a pratos e acompanhamentos mais exóticos, vivos, efervescentes, cujo tempo de preparação excedia a noção de dia ou semana. Os seres microscópicos – bactérias e fungos que os povos antigos aprenderam a conhecer e controlar – agora pareciam estar ao nosso favor, fornecendo sabores e vitaminas novas num tipo de alimentação que a humanidade conhece há tempos, mas que já não é mais tão praticada na maioria das casas em tempos de fast-food.

Entramos assim numa nova fase, que certamente deixará marcas: lá fora, alma que chora. Aqui dentro, vida nascendo. Crise epidemiológica, crises políticas e crises financeiras varrendo os países, deixando a todos com perspectivas cada vez mais diminutas do amanhã. Aliás, o que será do amanhã? Nunca soubemos e nunca saberemos responder essa pergunta com assertividade. Mas, pela lógica do saber acumulado, já entendemos que plantando e perseverando hoje, alguma coisa poderá ser colhida amanhã. Então, talvez a pergunta seja: o que podemos cultivar hoje para ter uma colheita interessante amanhã, ainda que essa colheita demore mais para chegar do que o tempo incerto que estaremos respirando por aqui?

De certo modo já comecei a cultivar coisas novas. Dos fungos, bactérias e leveduras que agora populam nossa cozinha tem saído novos sabores e aromas para alegrar a mesa. São culturas que pretendo manter e espalhar. Elas chegaram até aqui através do conhecimento e da domesticação de muitas gerações e passarão adiante mesmo depois de tudo isso acabar, afinal se dá pra espalhar os bichos invisíveis que acabam conosco, dá para espalhar também aqueles que nos mantiveram de pé. Aquele jantar chileno provavelmente nunca irá acontecer, mas no lugar dele virá toda uma mesa de conservas da sobrevivência que pudemos produzir. Quando isso irá acontecer? Se dissesse que sei estaria mentindo. Há certas coisas que não devem ser antecipadas para benefício do prazer em viver o agora, mesmo que o agora tenha começado semana passada e só vai estar de fato pronto daqui a alguns dias.

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